Capítulo 0 - Prefácio 

A luz estava rapidamente a desaparecer do vale, e com ela o calor da tarde. As famílias preparavam-se já para outra noite gelada, e começavam a ver-se compridas linhas de fumo cinzento no céu. Mas as crianças ainda brincavam pelos compridos relvados típicos que se estendiam, verdejantes, aos arredores de todas as aldeias da região, pontuados excepcionalmente por pequenos bosques. Heith, um pequeno rapaz de 10 anos, acompanhado por uma menina muito bonita, talvez um pouco mais velha que ele, impressionava-a levando-a por um caminho de terra na orla do vale, numa subida íngreme coberta de àrvores altas e escuras. O rapaz levava apenas um trapo muito pobre que lhe cobria metade do peito, os rasgões neste deixavam à vista as muitas feridas e cortes ao longo dos membros e do peito, provenientes de todas as brincadeiras num meio selvagem. Os calções eram demasiado grandes, transparecendo que o seu anterior dono era provavelmente o seu progenitor, e estavam tambem imensamente rasgados e sujos. Já a rapariga tinha muito melhor aspecto. O que por si não significa longos vestidos de seda e uma longa cabeleira loura, mas antes um vestido curto, muito gasto e descolorido e um cabelo fugazmente ruivo ao sol. Tinha também um colar, demasiado grande para ela, com contas de várias cores diferentes, e uma cruz deitada na ponta. O rapaz ia dizento parvoíces com um sorriso tonto na cara, sempre a saltar e a gesticular, e as risadas da rapariga eram audíveis muito longe, para quem estivesse atento. Como era o caso de um homem estranho, escuro, no topo de uma árvore. Tinha ombros largos e braços fortes, mas a sua camisa estava rasgada duas ou três vezes, entrevendo inúmeras cicatrizes. Tinha a barba mal aparada e olhos cansados, e via-se que nao tomava alimento digno desse nome à bastante tempo. Estava agarrado à árvore com toda a sua força, a sua boca formando uma curva estranha, e as suas pernas balouçavam, tentando impedir a sua queda. Desperto pelas risadas da rapariga, não se tinha apercebido da sua situação precária até escorregar, originando assim a sua situação actual.
- Ehh - tentou esclamar, mas da sua boca nenhum som escapou. Os seus dedos deslizavam perigosamente enquando a sua cabeça trabalhava para encontrar uma saída que nao envolvesse o seu corpo percorrer a distancia que o separava do chao a grande velocidade. Nao que tivesse muito tempo para ponderar, visto que a sua existencia estava claramente limitada à força que fazia para não cair.
- EHH - tentou exclamar de novo, soltando um pequeno gemido débil que só simpaticamente se pode nomear de chamamento. Reparou que a visão dos pequenos o alcançou. Os seus sorrisos tinham desaparecido, mas crescia neles agora uma curiosidade própria das crianças, não sem uma mescla de medo. A mão do homem escorregou finalmente, apenas o milimetro fatal que exigia dele uma nova quantidade de força que ele não tinha. Com um suspiro perdeu as forças, e, debaixo dos gritos da rapariga mergulhou para uma abrupta escuridão.

Capítulo 1 - Kei

  Tinham passado mais de 5 anos desde que Kei Ra Sav iniciara este trabalho. E desempenhava-o melhor que qualquer outro espião no reino. Provavelmente melhor que qualquer um no mundo conhecido. Encontrara uma certa capacidade na arte da profunda subtileza. E gostava. Mantinha uma postura séria e calma dentro do disfarce, aliada a uma actuação rígida, dura consigo próprio, leve com os seus subordinados, por quem não mantinha a menor preocupação. Mas naquele dia não tinha paciência para respostas idiotas de quem não perde antes um minuto a pensar naquilo que vai dizer. Como era o caso de um dos comandantes de infantaria que se entretinha a desafiar os seus equivalentes, sob uma base diária de reprimendas, e que apenas mantinha o seu posto devido às quantidades inaceitaveis de ouro que entregava aos seus superiores e aos dele. Tinha desta vez saqueado a casa de um dos outros comandantes, sob um alibi indescritível na forma de mercenários violentos. Confrontado com a acusação, argumentava que era difícil conter tropas em época de paz. Excepto que estas tropas estavam a embolsar lucro equivalente a um ano de trabalho das vidas miseráveis que levavam, o que nem era sequer digno de menção nos registos do empregador, dada a sua riqueza. Ocupando um activo posto de juízo de guerra há já 3 anos, infiltrado nesta coorte há mais de 5, Kei Rá sabia perfeitamente como impedir estas insobordinações. Mas travá-las nao era o seu objectivo. Aliás, nem seu nem de nenhum dos outros regentes, que vibravam com a oportunidade de fazer render o exército de mercenários, ao qual nunca chamavam seu, com uma "resposta a esta terrível afronta". Kei Rá tinha sido chamado hoje para dar uma opinião estratégica no rápido e preocupante desenvolvimento militar de uma nação vizinha, apelidada Deudara, que se poderia estar a preparar para quebrar o tratado de paz que os atormentava desde que tinha sido assinado, em troca de vários kilómetros de expansão dentro da sua própria regência, traduzidos em aldeias e impostos. Mas as questoes menores de infantaria e mercenários ocupavam o seu precioso tempo. Estava sentado numa mesa de madeira escura, rebordada a branco, que apenas continha uma pequena pena, um tinteiro, e a lista de nomes dos queixosos. Estes encontravam-se numa fila que se estendia até à enorme porta ao fundo da sala. Aplicou o castigo habitual ao regente de infantaria à sua frente, levantou-se e dispensou o resto da fila com um gesto de māo, nao sem que isso lhe valesse comentários desagradaveis provenientes de quem tinha não de todo pacientemente esperado para que ele ouvisse os seus desgostos. Mais de metade eram lavradores ou mercadores insatisfeitos com algum pormenor ridículo acerca de como o inverno tinha sido frio e não havia fundos suficientes para o sustento das suas famílias. Kei nada apreciava fazer vez de responsável público quando os seus deveres como estratega eram tão mais importantes e rentaveis para a sua cabeça e posição. Ghollin, um homem velho e gordo, que costumava desempenhar este papel, estava fora em trabalho, o que provavelmente significava que em sua casa rodava uma orgia repugnante, cortesia dos cofres da nação sem dúvida. Rei abandonou a sala com um passo confiante e um olhar superior. Todos os queixosos teriam que esperar agora um dia ou dois, provavelmente, para poderem voltar a ter uma oportunidade de serem ouvidos, mas não eram de todo importantes o suficiente para que esse facto lhe ocupasse o espírito.

    Dirigia-se apressadamente para a saída do edifício de comunicação social. Passava por infindas galerias e corredores cobertos de quadros e mobília arranjada, caros o suficiente para enfardar e vestir qualquer um dos pobres agricultores dos arredores por um ano, e no entanto ali continuavam, completamente imóveis e inúteis, vãos na sua admirável mostra, sem que sequer um fosse surripiado. Outras vezes poderia Rei questionar-se de tal inutilidade e insensatez, manter uma cidade com tais desníveis sociais, quando seria de longe mais produtivo empenha-los para investir em investigação alquímica, por exemplo. Mas hoje não. Hoje não tinha tido tempo para sequer escolher as refeições que tomaria durante o dia. Com todo o trabalho a fazer para inaugurar o Argus Bladd, nao teria uma saudável noite de descanso talvez até à proxima lua. Os preparativos tinham já começado há talvez dez ou doze dias e muito pouco tinha sido riscado da lista de preparações para o grande festival. Quantas das torres ja tinham sido erguidas? Talvez duas ou três, das trinta que seriam necessárias. Quantos convidados ja tinham sido convocados? Muito perto de nenhuns, claramente excepto os fáceis mercadores de dentro da cidade, que rodavam habitualmente pelos principais edificios de estado. Tudo isso teria de ser feito sem que ninguem se apercebesse de que tentava introduzir quinze assassinos profissionais em todos os principais pontos de interesse. O Argus Bladd era uma celebração que se realizava ha muito tempo, de três em três anos, que comemorava o culminar da regencia de Theralde, e onde este decidia se queria abdicar do seu fardo de regente a alguem mais novo e sem tantos cabelos brancos. Este ano o povo agitava-se, porque corriam rumores de que o regente estava cansado do posto e iria entregar o cajado a Jolrus, seu sobrinho.
   À saída do edificio Kei começou a correr. Passou por inúmeros conhecidos pelas ruelas que lhe levantaram uma saudação, e a quem surpreendeu nao oferecendo qualquer resposta. Eram sobretudo mercadores e mulheres que conhecia porque era esse o seu dever, mas nunca os trataria por amigos. Os seus pés ressoavam na pedra da rua, denunciando a velocidade do seu deslocamento. Virou varias vezes, percorreu umas escadas em passo rapido e chegou a uma porta grande e pesada, que muitas pessoas menos briosas sonhavam trespassar. Ao seu lado, reparou tarde demais, encontrava-se Qaib, o mestre de filosofia.
   - Olha quem decidiu aparecer - exclamou ele. 
Odiava-o, e o sentimento era mútuo. Qaib nao tinha cabelo, e usava apenas uma comprida capa escura com capuz caído. As maos estavam escondidas uma na outra, com as mangas escorridas para baixo, exageradamente grandes, encondendo provavel riqueza em aneis e pulseiras.
   - Pensava que tinhas ficado a trabalhar no centro, com o povo... - Era a sua maneira de troçar dele.
   - Decidi acabar mais cedo  - respondeu Kei, verdadeiro - Fui chamado e teria aparecido mais cedo, nao fossem as duas tarefas tão impossíveis de conciliar, Mestre.
   - Fizeste bem, Jhast, o assunto é urgente. Fazes as honras?
   Com isto Qaib pretendia que ele abrisse a pesada porta. Kei retirou uma pequena circunferencia metálica dentada de um fio que usava à volta do pescoço e inseriu-a na ranhura da porta. Com um clique a porta estava aberta, e Kei empurrou-a para dentro, deixando no entanto Qaib passar à sua frente. O edificio onde entravam continha apenas duas salas, a sala regente e a sala de Armas, o que significava que ao entrarem no edifício apenas encontravam duas novas portas, num corredor triangular despido de ornamentos, e com um gato alado desenhado no chão, ícone da regência. Viraram à esquerda, para a sala de Armas. Ja la se encontravam varias figuras publicas importantes. Yonum, o governador, que tratava da cidade, Vela, a mestre mensageira, nome que davam aos espiões, e Kkabhar, o General do exército. Estavam todos sentados em círculo de volta de uma pequena fogueira que aquecia a sala, que se encontrava debaixo do chao, e que tinha uma lage de pedra transparente para se poder caminhar por cima. Era notória a ausencia do regente, pois tinha um pequeno trono no fundo da sala. Faltava tambem Nilwy, a misteriosa personagem cuja Kei nunca descobrira o cargo. 
    - Bons olhos o vejam Jhast, pensei que nao pudesse juntar-se a nós! - Exclamou Kkabhar, elevando-se aos seus quase dois metros, ao levantar-se. Para um homem como Kkabhar, que ja viu mais luas que todos os outros presentes, era extremamente bem constituído. Tal urso guerreiro, exibia o seu peito nú com orgulho, marcado e remarcado com mil cicatrízes. Vestia uns calções castanhos, de pele rija. Como era característico tinha o seu machado de guerra consigo, pousado à sua direita. O machado chamava-se Tronddin, e era ainda mais velho que o seu actual detentor. Era negro como um corvo mas estava habitualmente limpo. Kkabhar trazia tambem uma capa vermelha, com a silhueta de Tronddin pintada, que o identificava como general.
   Qaib sentou-se à esquerda do trono, na sua posição de conselheiro. À direita estava Kkabhar e duas cadeiras depois Yonum. Kei sentou-se entre estes dois últimos, de frente para Vela. Vela tinha um ar misterioso. Trazia um vestido comprido branco arroxeado, que se espalhava pelo chão à sua volta como mel. Semi-transparente, deixava entrever uma rija camisa que trazia por baixo, de peles curadas, e uma apertada saia tambem do mesmo material. Tudo isto tornava-a extremamente estranha, ainda mais porque carregava uma pequena vara, roxa tambem, cuja não conhecia o propósito.
    - Bem vindos, Qaib, Jhast - cumprimentou-os. A sua voz era musical, mas com um timbre cavernoso. Lembrava sempre alguem a falar do fundo de um túnel - Deudara traz-nos de novo más notícias. Xet, os seu general, juntou mais de cem novas caras ao seu exército. Ha muito que esperamos um ataque que ainda não se concretizou. Encontramo-nos em relativa paz, apenas devido ao acordo que nos une.
   Kei respondeu:
   - Se movimentarmos as nossas tropas agora poderemos dar a ententer que somos nós que  nos preparamos para quebrar o acordo, forçando-nos a uma guerra indesejada. Mas se nao nos movimentarmos corremos o risco de ser apanhados desprevenidos. É uma faca de dois gumes.
   - Devemos preparar-nos. A guerra é inevitavel - a voz de Yonum era desgradavelmente aguda, que do seu largo corpo nao se adivinhava. As vestes claras do governador eram percorridas por linhas douradas, com fitas azuis nos pulsos, como os mercadores. À volta do pescoço inúmeros colares de pedras preciosas, com contas caras de safira, rubi e esmeralda, e outras mais estranhas como pedra obsidiana, lapiz lazuli e pedra-rosa do sul.
   - A guerra não é inevitavel - discordou Kei, muito contra os seus próprios propósitos - temos apenas que reforçar a aliança com um qualquer género de tributo. Deudara tem relaçoes fracas com a Halia e com o Ducados. Seria mais proveitoso criar uma ligaçao forte com deudara, dividindo o terreno de Halia.
    A estas palavras os dados estavam lançados. Como espião de Halia este era o golpe de mestre. A sua terra natal tem neste momento um enorme trunfo que mais ninguem naquela sala tinha conhecimento, nem mesmo Vela. Se durante a Argus Bladd o plano corresse de feiçao, o sangue do Regente pintaria o púlpito e ele estaria de volta à sua terra antes de qualquer presente ter percebido o que se passava.
    - Atreves-te a propor uma guerra com Halia? - revoltou-se Qaib.
    - Pensai a fundo neste assunto. A Halia esta neste momento mais fraca que nunca. Poderemos facilmente evitar uma guerra com Deudara se escontrarmos antes uma com a Halia. Buccois e Xet não perderão a hipótese de fazer uma jogada de sorte assegurada. Buccois, rei de Deudara, escalou uma sangrenta parede de corpos com o seu próprio punhal para chegar à posição onde se encontra, será tentado a aceitar.
   Kkabhar piscou os olhos de entendimento.
   - E mesmo que não aceite aperceber-se-á de que as nossas intenções nao envolvem uma guerra com Deudara, mas ao mesmo tempo que o nosso exército continua afiado como uma faca. Ah irmão, é a jogada ideal.
    Muitas vezes tratava-o Kkabhar por irmão. Era talvez o único amigo que Kei possuia tão dentro das linhas inimigas, e iria certamente custar-lhe mais que tudo deixa-lo à sua sorte na anarquia que se preparava para criar.
    Horas passaram naquele dia a discutir a hipótese da dura guerra. Sem o regente estariam sempre infinitamente longe de chegar a uma decisão. Mas a semente estava plantada, e mesmo nas reticentes cabeças de Qaib e Yomun a ideia fez algum sentido. Com Kkabhar do seu lado Kei preparava-se para uma vitória facil no campo Lógico. O regente dependia muito do seu conselho para tomar uma decisão, e se Qaib era o principal influenciador, Kkabhar era de longe o mais honesto. O regente chegou ja o sol se tinha posto. Voltava de uma tarde com a esposa passada a inaugurar diferentes monumentos ou habitaçoes, como fazia em todas as vésperas de Argus Bladd. Era imensamente requisitado e desenpenhava o seu papel com amor. Mas esse papel deixava-o com uma terrível falta de paciencia para um conselho díspar. Ao entrar, Qaib anunciou:
    - Regente Thamm Haye Theralde, Gato Alado do reino de Hlawonosa, quinto da sua cas...
    - Poupa-te às formalidades Qaib, não estou com cabeça - interrompeu Haye Theralde - dá-me o ponto da situação.
    - Bom, foi-nos apresentada uma proposta e temos estado a discutir as implicações mas penso nao ser o melhor percurso a tomar.
    - É sem dúvida o melhor percurso Mestre Qaib - replicou Kkabhar - é apenas um método um pouco agressivo...
    - Ponham-me a par.
    Kkabhar resumiu rapidamente a estratégia, por alto. A face de Haye Theralde deixava transparecer a dúvida que certamente lhe crescia no espírito. E no entanto este foi o seu veredicto:
    - Jogada inteligente. Aprovo.
    Os olhares incrédulos recairam todos sobre o regente. Tinha sido demasiado facil, uma decisão que implicava a possibilidade de enviar centenas de soldados para o campo de batalha, e no entanto tomada de animo leve.
    - Certamente quererá mais tempo para pensar Regente Theralde? - tentou Qaib.
    - De todo - negou o regente - ja tinha colocado esta hipótese eu mesmo.
    - Está decidido entao - interrompeu a voz de Vela. Levantou-se e dirigiu-se à saída.
    Sob o olhar desgovernado de Qaib, um a um, Vela, Kkabhar, Kei e Haye Theralde abandonaram a sala. Kei levou consigo um sorriso na cara. Estava feito. Agora tinha Dural que cumprir a sua parte. Tinha sido muito fácil. Demasiado?

Capítulo 2 - Dural

Dural era um curioso órfão. Toda a sua vida tinha vivido pelas ruas mais escuras das maiores cidades de Halia. Roubou e feriu vezes sem conta com a sua sobrevivencia em risco. Pequeno como era, tornava-se facil a tarefa de desaparecer na altura certa. O seu único problema era o cabelo. Sem saber porquê, tinha nascido com cabelo cor da neve, o que o tornava demasiado característico. Ultrapassava esse problema das mais inventivas maneiras. O mais constante era usar lama para encobrir a cabeça, o que lhe dava um aspecto sujo todos os dias. Ha cerca de tres luas tinha descoberto um produto incrivelmente eficaz que tornava o seu cabelo escuro como o bréu. Descobrira-o quando pescava uns peixes com uma vara e a ponta tinha-se tornado preta. Imediatamente recolheu o máximo possível dessa substancia, e andava agora com segurança pelas ruas de Atziyre.
   Sentia-se estremamente feliz.
   Recebera um trabalho muito pouco digno de um antigo ladrão em quem confiava. Punha as mãos no fogo que este trabalho o iria deixar de estomago farto durante muito tempo em função da quantidade de prata prometida. Já antes tinha Lhgess prometido quantidades maiores de prata em troca de tabalhos sujos. Já roubara cartas, envenenara diversos trabalhadores dos mais variados campos, e tinha até acelerado a morte de uma velha senhora de posses. Mas por dinheiro nunca tinha morto ninguem, haveria de ser divertido. Nunca achou que o fosse fazer, mas Lhgess tinha-lhe prometido uma gorda recompensa em favor da maior discrição quando assassinasse Theralde. Ele sabia quem era. Não fazia a menor ideia do que aconteceria à cidade quando o fizesse, nem se sairia vivo para desfrutar do dinheiro, mas o risco valia a pena. Apenas tinha que ser àgil, forte, e muito paciente. Exactamente por isso se encontrava no rio, com os pés presos com cordel de fibras, a umas pedras, nadando contra a corrente há ja algum tempo. Quem o via troçava dele, atirava-lhe pedras ou pensava em tirá-lo dali, sem nunca o fazer. Era o exercício perfeito. Tinha que se concentrar em nadar entre o enorme barulho da àgua que corria veloz à sua volta. Tinha tambem por vezes que se desviar dos projécteis, e saber se era reconhecido por alguem que ja tenha magoado, o que o obrigava a estar incrívelmente atento ao ambiente à sua volta, mesmo desgastado pelo esforço físico. Começava a ficar cansado. Um rapaz mais velho que ele fazia questão de o magoar o maximo possível enquanto podia, e parecia ser o último transeunte a observa-lo. Este encontrava-se numa ponte a uns metros a atirar-lhe pedras do chão. Com alguma calma parou de nadar e deixou-se levar pela corrente do rio, até ficar pendurado pelos pés, sem esforço, a favor da corrente. Desatou o nó que o prendia às pedras e que o mantinha no sítio e nadou até à margem, muito perto. Pegou numa pequena pedra e atirou-a de volta para o rapaz, acertando-lhe em cheio da anca enquanto este se agachava para recolher mais pedras. Rindo-se, começou a fugir para dentro da cidade por outro caminho. As ruas da cidade, para ele, eram já pouco abundantes em segredos. Poucos lugares não tinha ainda visitado e conhecia devidamente. Mantinha as poucas coisas que possuía num pequeno albergue que tinha ardido e nunca seria reparado devido à sua localização. Enquanto corria para lá passou por um homem forte, alto e bem vestido que olhava atentamente para ele. Vestia roupas pretas com reflexos azuis, de um material que não conseguia identificar. Uma capa caía-lhe pelos ombros para evidenciar a sua importância. E encontrava-se precisamente no seu caminho. Era claramente um homem de classe social alta, mas era magro para um mercador, por isso devia ou ser da família da regência ou trabalhar para esta. O homem levantou dois dedos e apontou para uma ruela escura e vazia. Depois avançou para lá, e desapareceu na escuridão. O homem não estava armado, por isso Dural achou que não teria problemas caso este quisesse fazer-lhe mal. Mas o seu porte arrogante assustava-o. Virou para o beco e viu que o homem lá estava, encostado a uma parede, e com um rolo de ervas na boca. O rolo deitava fumo e perfumava o ambiente com um cheiro forte, mesmo em lugares abertos. Dural olhou para ele e pediu uma resposta com os olhos, então o homem falou.
   -  És um desperdício nesta cidade, ninguem te quer, nem te dá valor. Depois do golpe, se quiseres fugir daqui para viver uma vida mais abastada, mas tambem mais rica em experiências, algumas desagradáveis, outras emocionantes, mas todas enriquecedoras, vai ter ao portão sul. Eu levo-te, e levo a recompensa que  Lhess the prometeu.
   - Como sabe disto?
   - Achavas que aquele ladrão de idosos e vacas te daria um trabalho como o que tens entre mãos? Eu sou o verdadeiro empregador, e nao és o meu único empregado.
   - Onde iríamos?
   - Para Halia. Para minha casa.
   - A Halia está uma desgraça. Nem se consegue sustentar a si própria. Posso ler ladrão e novo, mas oiço os oradores públicos. Já estive com Halianos e todos deixaram a sua terra, sem esperança de voltar.
   - Isso é porque a Halia possui os melhores espiões do mundo conhecido. Mas fazer passar um país por decadente, usar uma tal estratégia, envolve declamar falsas verdades até ao próprio povo. É obvio que ja vimos dias melhores, mas conseguimos o nosso próprio sustento. Hlawonosa vai deixar de poder dizer a mesma coisa, depois de fazeres o que tens a fazer.
   Com isto o homem sorriu. Um sorriso assustador e perverso que  levava a querer que o homem desejava que todo o mundo ardesse.
    - Qual o objectivo em queimar e destruir, se não se pilhar antes? Não podem destruír este reino por prazer, ha muitas pessoas que nada têm a ver com jogos políticos.
    - Oh, vá lá, achavas que íamos destruir tudo isto? Para depois termos o trabalho de reconstruír? Que ideia sem sentido, não faremos tal coisa. Mas ao menos tens um coração decente, e alguma honra. Virás, não por medo pelo que acontece aqui, mas por curiosidade pelo que não acontece. Antes do nascer do sol no portão sul, depois da Argus Bladd. Pratica com o corpo e com a mente como tens feito e serás invencível. E nao falhes!
     O homem virou-lhe costas e dirigiu-se para a rua principal, mas Dural teve que o interroper.
   - Espera! Diz-me o teu nome.
   O homem sorriu de novo e disse, cheio de orgulho na voz - Kei Ra Sav. Conhecer-me-ás a seu tempo. - E desapareceu de vista.

 

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