Terrenos
O
que se passa nos sítios que não vemos?

I - Bonança

     O mês começou, a tempestade passou, e as crianças já estavam menos assustadas. Pelo menos, assim parecia. Tinha sido um grande temporal, e provavelmente os terrenos que eram o sustento da família estavam alagados, e não havia certezas de que pudessem ainda superar mais um inverno apenas com aquilo que tinham.
     - Os cavaleiros virão outra vez este mês, pai ? - Perguntou o seu filho Jay.
     Morriman olhou para o filho. Estava a crescer rapidamente e já estava muito grande.
     - Provavelmente sim...
     - Então vão roubar-nos outra vez o nosso pequeno almoço? - Perguntou a sua filha Sine.
     - Meus filhos, eles não nos roubam. Esta casa e estes terrenos não nos pertencem, pertencem ao senhor de Ladan, e por isso temos que os pagar de alguma forma. - E virou-se para Jay - Quando acabares o teu treino de Cavaleiro poderá ser que possas também tu alugar terrenos... se fores realmente bom, mas ainda falta muito tempo.
     - E sou pai, e sou! Quase em todas as lições que temos de treino de Espada eu fico em primeiro!
     - Muito bem, mas não te esqueças dos outros Assuntos que também são importantes!
     O pequeno Jay era realmente corajoso e forte para os seu 13 anos, mas o pai tinha medo que ele praticasse só Espada, e depois falhasse em Contas e outros Assuntos importantes. Já a filha era atinada, talvez por ter mais 4 anos que o irmão. Estudava como podia, principalmente na escola da Aldeia, e almejava trabalhar com os curandeiros.
     - Morriman, devias ir dar uma vista de olhos pelo terreno, amanha provavelmente já não temos cereais, e o deposito já está quase vazio.
     Morriman olhou para a mulher, Mariah, e assentiu. Vestiu-se para sair e beijou a esposa rapidamente. Já la fora, dirigiu-se à estrada, onde tinha um pequeno cavalo num estábulo simples para aí virado. Montou no cavalo e galopou como pode até ao seu campo, que cuidava com atenção.

II - Espada
     Passava um mês desde a tempestade. Hoje por acaso não chovia, mas estava nevoeiro. Morriman falava com o ferreiro acerca da espada que ofereceria ao seu filho, quando este celebrasse o dia do seu nascimento. A primeira espada era muito importante para o treino de um cavaleiro, e era-lhe dada muito cedo, de maneira a este obter a maior experiência que era possível. Morriman tinha pouco dinheiro, mas tratava-se do seu filho, e por isso conseguiu juntar o suficiente e pagar uma espada relativamente boa. O Guardião do rapaz era Artesão, e ajudou Morriman na sua compra. Era Ucatar, e preocupava-se com o seu protegido tanto quanto podia. Sabia que não fazia um trabalho excelente, mas o rapaz quase nunca precisava de ajuda. Ao receber a espada do filho embrulhada em cabedal, Morriman pagou ao ferreiro. dirigiu-se à estrada para voltar a sua casa, mas três cavaleiros no horizonte chamaram-lhe a atenção. Cavalgavam também na direcção de sua casa, e Morriman gelou. Ainda não tinha suficiente para pagar o mês que tinha passado a correr. Correu para o cavalo e montou, guardando a espada nova dentro do saco do mesmo. cavalgou para sua casa, que era um pouco afastada da aldeia. Chegou quase em simultâneo que os cavaleiros, e ao perceber que tinha acertado quanto as razoes da sua visita, convidou-os a entrar. Sine, Mariah, e, estranhamente, Ucatar, saudaram-no. Antes que pudesse trocar quaisquer palavras com estes os homens que tinham entrado com ele dirigiram-lhe a palavra:
     - Viemos receber o pagamento de Lord Elweiss, cobrado todos os meses pela estadia neste lugar e uso dos campos em redor.
     - Pois... - começou Morriman, mas foi interrompido pela mulher.
     - Estão aqui os habituais 170 cirrin, muito obrigado - falou Mariah, entregando ao homem um saco que tilintava. O homem mostrou então o brasão de Elweiss, como prova de que não mentia e se tratava realmente do cobrador, mas Morriman olhou aborrecido para Ucatar, pois tinha percebido, e não gostava de ficar a dever nem 1 cirrin a ninguém.

III - Fogo
     Jay cortou o ar com o seu novo instrumento. Já tinha 14 anos, e iria começar agora o seu treino a sério, um treino duro do qual a maior parte dos rapazes desistia e começava depois quando já fossem maiores. Mas Jay tinha força de vontade. Isso via-se quando se treinava, mas também quando ajudava o pai a lavrar, ou quando queria proteger alguém. Nesse dia apenas continuava o processo de habituação com a espada, que era pesada e grande para ele, apesar de ser uma espada de pequenas dimensões.
     De repente, reparou num enorme rumo que se erguia a sul, e que crescia em altura e largura. colocou a espada na bainha por traz das costas, não sem esforço, e saiu então do pátio da casa de Ucatar, deixando a porta entreaberta. Correu por ruelas estreitas ou  caminhos largos, o melhor que podia para chegar ao local de onde se erguia o fumo. Não demorou muito, pois conhecia bem a aldeia, e rapidamente chegou a uma casa que ardia em chamas azuis e verdes. Sentiu um imenso calor, apesar de ainda estar tão distante. Reparou então que estavam pessoas dentro da casa, mas estas não gritavam ou pediam socorro. Estavam tranquilamente a tomar a refeição do dia. As chamas apesar disso deflagravam à sua volta, e elas próprias ardiam, tal como a casa, e libertavam imenso fumo. Mas tanto umas como a outra não pareciam estar a queimar-se, pois até permaneciam nas suas cores originais, e não se deterioravam.
     Sem se poder aproximar, Jay observava o fogo que não queimava, perguntando-se como podia aquilo estar a acontecer. Viu então alguém aproximar-se. era uma homem de meia idade, que bateu à porta como se tudo estivesse a decorrer normalmente. A porta foi-lhe aberta, e ele entrou. De repente, tudo se desvaneceu, como se nada se tivesse passado, e o fumo desvaneceu-se no ar. Jay aproximou-se então da casa e tocou nas paredes, estavam frias.

IV - Capital
     Jay continuou o seu treino, cada vez com mais confiança. Passara o primeiro ano entre os melhores da região, e Morriman teve então que fazer a difícil escolha de o deixar treinar na capital, onde o seu treino seria mais duro, mas mais eficaz. A capital era longe, e o rapaz precisava também de dinheiro para viver la. Ucatar estava disposto a dar o que fosse necessário, mas não iria com ele. Tinha a sua própria família. Jay partiu, lentamente, numa carroça de bois, com um mercador da aldeia. Tinham que atravessar metade do reino, e a viagem iria demorar dias àquela velocidade. Jay, impaciente como era, procurava em todas as aldeias por onde passavam um transporte mais rápido, mas já ninguém ia para a  capital sem ser os mercadores. Passaram a primeira noite num albergue barato, numa aldeia de nome Tiado. O mercador que o levava disse-lhe que dali até à próxima aldeia passariam por muito menos aldeias, visto que o terreno era mais inóspito, e que portanto a viagem seria mais rápida. Jay notou que era verdade logo após a deixarem a aldeia, no dia seguinte. A estrada por onde os bois caminhavam era de terra, contrariamente ao que tinham apanhado até ali, estradas de pedra construídas pelos trabalhadores do Rei, mas parecia que isso não os incomodava minimamente. Contudo, o mercador fazia paragens para alimentar os bois, verificar a carga e descansar, e nessas paragens Jay passava o tempo a dar estocadas no ar com a vara com que treinava juntamente com a espada. Não treinava tanto com a vara, e apercebeu-se disso durante a viagem, portanto treinava quando podia.
     Deixaram as terras inóspitas no dia seguinte, e chegaram à capital dois dias depois. Ao chegar, Jay perguntou a um dos cavaleiros que guardam a cidade pela residência de Daqao, mestre de armas que o iria treinar, segundo o seu tutor e a sua escola. O cavaleiro escoltou-o, devido à sua idade, até ao seu destino. Pelo caminho perguntou-lhe:
     - Vais ser treinado para cavaleiro?
     - Sim, espero.
     - És muito novo, e Daqao é duro. Foi meu mestre. Como te saíste nos outros assuntos?
     - Tive uma boa nota... - esgueirou-se Jay. Sabia que todos tinham dúvidas quando alguém tão novo como ele entrava na escola de cavalaria, e que tentavam sempre leva-lo para outros assuntos, mas Jay tinha a sua cabeça focada. Sabia que nada o faria tão feliz como cavalgar todos os dias com mérito.
     Chegaram a uma residência de pedra, com um grande arco à direita que dava acesso a um pátio. Era possível ver a cavalariça de onde se encontravam, mas Jay dirigiu-se à entrada da residência assim que o cavaleiro o deixou. Estava nervoso, mas confiante. Um homem que Jay supôs que fosse o próprio Daqao abriu a porta lentamente. Era muito largo, tinha os ombros e os braços fortes, mas parecia velho, com o pouco cabelo que tinha todo branco e vestindo um simples robe castanho.
     - Sim?
     - Sou James Are.
     - Ah, da escola do norte. Chegas cedo, o que é bom. Iras treinar aqui mesmo, na minha residência, juntamente com outro rapaz, um pouco mais velho. Onde estas hospedado?
     Daqao tratava-o já como aluno, não como um rapaz de campo, o que lhe agradou.
     - Ainda não encontrei um lugar - Respondeu ele.
     - Perfeito, ficarás aqui, que é mais barato que qualquer outro sítio na cidade.
     Isto agradou-lhe. Quanto menos gastasse mais tempo ficaria na capital antes de ir de novo a casa pedir. Queria encontrar um pequeno trabalho, mas sabia que poucos feirantes ou vendedores lhe pagariam decentemente, por isso dava-lhe jeito poupar. Mesmo assim perguntou:
     - Quanto?
     Daqao sorriu.
     - Bem, podes começar por cuidar do pequeno bosque que me pertence. Quando o verde do chão brilhar e a sebe refulgir eu penso noutra maneira de me pagares. E é já um começo de treino. Tens uma espada? Mostra-me a tua espada.
     Jay retirou-a da bainha das costas, onde a carregava constantemente para se habituar, e deixou-a escorregar das mãos, passando-a para as de Daqao. Este examinou-a cuidadosamente. Depois deu uma estocada no ar. Daqao, apesar da idade e do traje, tinha um ar de guerreiro, veterano sim, mas sólido, como uma muralha de escudos. Jay estava finalmente a aprender com os verdadeiros mestres. E estava feliz.
    Todos os dias Jay acordava e fazia a tarefa que Daqao lhe pedia, de modo a pagar a renda. Normalmente eram trabalhos pesados para um rapaz da sua idade, e chegava ao almoço suado e esfomeado. Almoçava com Daqao e o outro aluno, que se chamava Ludo. Ludo era bastante mais velho que ele, mas era magro e tinha começado o treino mais tarde. Depois de almoço Jay e Ludo treinavam no pátio em frente à cavalariça. Ludo usava uma estranha espada esverdeada com apenas um gume, recurvada e atípica aos cavaleiros. Por vezes treinavam um com o outro com varas, e notava-se imenso a diferença no estilo. Ludo usava o facto de ser leve para aumentar a pique a sua velocidade. Raras vezes conseguia acertar-lhe mesmo quando lhe abria a defesa, e saía destes treinos sempre cheio de nódoas negras, principalmente no peito, por ser mais baixo.

V - Água
     Todos os dias Jay acordava e fazia a tarefa que Daqao lhe pedia, de modo a pagar a renda. Normalmente eram trabalhos pesados para um rapaz da sua idade, e chegava ao almoço suado e esfomeado. Almoçava com Daqao e o outro aluno, que se chamava Ludo. Ludo era bastante mais velho que ele, mas era magro e tinha começado o treino mais tarde. Depois de almoço Jay e Ludo treinavam no pátio em frente à cavalariça. Ludo usava uma estranha espada esverdeada com apenas um gume, recurvada e atípica aos cavaleiros. Por vezes treinavam um com o outro com varas, e notava-se imenso a diferença no estilo. Ludo usava o facto de ser leve para aumentar a pique a sua velocidade. Raras vezes conseguia acertar-lhe mesmo quando lhe abria a defesa, e saía destes treinos sempre cheio de nódoas negras, principalmente no peito, por ser mais baixo. Ao treinar com a espada, tanto contra os cepos como contra o seu mestre, Jay notava a sua falta de força nos braços. Certa noite, estava Daqao sentado no seu canto favorito da casa, rodeado de rolos e livros de informação, Jay comunicou-lhe as suas preocupações. E Daqao deu-lhe um estranho exercício para fazer. Elevar todo o ser corpo através da força dos seus braços, com o seu corpo numa posição horizontal, e faze-lo todos os dias, o máximo de vezes que conseguisse, varias vezes ao dia. Assim que chegou ao quarto que lhe estava reservado, Jay retirou a espada das costas, deitou-se e elevou o seu corpo. Era fácil, e sorriu. Desceu o seu corpo de novo e ao se elevar outra vez percebeu imediatamente que estava enganado. Não era nada fácil. Jay puxou os seus limites. Desceu três, cinco, dez vezes até que os seus braços não aguentaram mais e deitou-se, para descansar. Nos dias que passaram daqao praticou este e outros exercícios que Daqao lhe dava. Cada um era mais difícil que o outro, mas a junção dos treinos com o dia-a-dia de tarefas pesadas ajustaram e delinearam os seus músculos. E Jay passou a gostar também destes exercícios.
     Passado um ano Daqao recebeu um novo aluno. Aluna aliás. Era provavelmente da idade dele, tinha um olhar curioso e um andar tímido. Era a primeira rapariga da sua idade que via desde que tinha deixado os seus pais.
     - Tal como vocês, Eryanne veio ter comigo em busca de conhecimento, mas neste caso História. - Apresentou Daqao, nessa noite - Tal como os meus cabelos brancos mostram, já vivi a minha conta de anos, e Eryanne vai aprender tudo aquilo que sei, ou melhor, aquilo que ainda me lembro, para que nada se perca. Eryanne sorriu. Lembrava-o da sua irmã, sempre curiosa no porquê das coisas, sempre com uma explicação para os mais pequenos eventos da natureza.
     - Eryanne, tal como tu, veio de muito longe. Vai ficar a estudar e dormir na minha residência também.
     Jay sorriu, e depois perguntou-se porque sorria. Muito mais tarde Jay ainda estava a pensar nela. Decidiu levantar-se e dar uma volta pela residência, como fazia tantas noites. Mas desta vez tinha um propósito muito mesquinho, e sabia exactamente onde queria ir. Subiu um lance de escadas e virou duas vezes à esquerda. Encontrou uma porta de madeira entreaberta, e espreitou. Eryanne encontrava-se deitada na sua cama, e dormia, tão silenciosa e quieta que parecia uma pintura. Jay sorriu, pois apenas vê-la dormir fazia-o rir-se para dentro. Olhou para ela por mais uns segundos, e de repente reparou numa camada azul, que envolvia as partes que conseguia ver do seu corpo. Curioso, entrou sorrateiramente e aproximou-se. Agua escorria de cada poro da sua pele, como uma cascata interminável, e agora já escorria pela cama até ao chão. Era a água mais pura que jamais tinha visto, e aproximou-se ainda mais para lhe tocar, mas ao aproximar-se da cama fez um gesto demasiado brusco e tocou sem querer na mão e na cara de Eryanne. Esta acordou devagar, e olhou em volta, sempre com a água a escorrer do seu corpo. Olhou de repente para ele e assustou-se, e a água transformou-se em fumo roxo.
    
VI - Dom
     - Que estas aqui a fazer? - perguntou meio assustada.
     Jay não tinha uma resposta decente para lhe dar, por isso respondeu sinceramente.
     - Queria ver-te.
     Eryanne, apesar de tudo, sorriu.
     - Escolheste uma altura estranha para o fazer, rapaz. Amanha falamos melhor.
     - Não estas curiosa em relação a esse fumo roxo? - perguntou ele, e de repente apercebeu-se que o fumo roxo tinha-se lentamente transformado em agua, mas desta vez agua azul escura, como a do fundo do oceano.
     - Estas a dormir acordado? - perguntou ela - Não há nenhum fumo roxo em lado nenhum...
     - Agora transformou-se em água outra vez - disse ele, olhando para o chão.
     - Hahah, estás mesmo já a sonhar, onde é que vês água agora?
     Jay agachou-se, certo de que estava a olhar para água, e tocou no chão perto dela. A agua não dava sinais de sequer entrar em contacto com o seu corpo, e o cão estava completamente seco.
     - A sério, Jay, vai dormir.
     "Então ela não consegue vê-la..." e de repente lembrou-se das chamas que tinha visto e que já tinha esquecido. Também essas chamas não tinham sequer aquecido aquilo que aparentemente devoravam.
     - Rápido, vem comigo - e sem esperar pela resposta agarrou a mão dela e puxou-a para fora do quarto. Corria o mais silenciosamente que conseguia, e quando se aproximou do quarto de Daqao abrandou.
     - Queres-me explicar o que se passa de errado contigo? - sussurrou ela.
     Ele ignorou a pergunta e espreitou para o quarto de Daqao. Este dormia também, envolto numa finíssima camada de terra que lembrava sujidade de trabalho campestre.
     - Olha, consegues ver?
     Ela espreitou - Ver o quê? Daqao a dormir?
     - Não, a terra à volta dele, olha bem!
     - Não vejo nada de anormal rapaz.
     - Eu vejo uma fina cortina de água a escorrer do teu corpo, silenciosamente, e uma camada de terra a envolver o corpo de Daqao... - Tentou ele explicar-se.
     Eryanne abriu muito os olhos, de repente.
     - Acho que já sei do que estas a falar. Vem comigo!
     Seguiram por dois corredores e entraram da divisão preferia do Mestre. Eryanne procurava lia agora afincadamente títulos e títulos de crónicas e tomos que preenchiam as paredes.
     - Ah, aqui! - Retirou um e começou a ler. Folheava freneticamente, e parava em muitas páginas para ler para si mesma. Passado pouco tempo parou - Encontrei, ouve: "Nessa mesma cidade encontramos Awaha, a Bruxa. Ela olhou para o nosso grupo e apontou para o Traidor. Ela sabia quem eram as pessoas de bem e as pessoas de mal. Disse-nos que fogo queimava toda a pele do Traidor"
     - Fogo! Eu vi fogo, uma vez, devorando uma casa sem na realidade a queimar.
     - Espera, ouve o resto. "Disse-nos então que cada uma das nossas almas era limpa como a mais pura água, ou fiel como a mais tenra terra. E o rei viveu por mais dez anos". Jay, tu consegues ver a alma das pessoas.
     Reparou subitamente que a água tinha parado de escorrer, e que Eryanne estava tão igual a quando a tinha visto pela primeira vez.
     - Bem... agora já não consigo.
     - Como assim?
     - Desapareceu. A tua alma. Já não a vejo.
     - Esforça-te! Tens um dom magnífico.
     Jay fechou os olhos e pensou nela, no seu andar tímido e no seu olhar curioso. Quando olhou de novo lá estava a cascata de água, escorrendo sempre. Ela deve ter adivinhado, pela sua expressão, porque disse.
     - Já a vês não já? Dizes que é água? Isso é bom não é?

VII - Adulto
     Tinham passado dois anos desde que tinha descoberto a sua dádiva. Jay era agora mais forte fisicamente que o seu mestre, mas continuava a aprender. Era agora também da altura de Ludo, e os seus combates eram renhidos, muitas vezes envolvendo já espada contra espada, em duelos onde um erro poria ser fatal. Tinha também desenvolvido uma relação com Eryanne, tinham até começado a deitar-se juntos recentemente. Ela dava-lhe aquilo que parecia que lhe faltava desde que tinha deixado os pais, há já mais de 3 anos, apesar de já os ter visitado duas vezes, e de na última a ter levado e apresentado devidamente. Isto porque Eryanne lhe contou que provinha de bens, e lhe ofereceu como presente a viagem que para ele era sempre demasiado cara. Passava as manhãs a trabalhar para Daqao, ultimamente tinha estado a reconstruir as cavalariças, passava as tardes a treinar, muitas vezes já em cima de cavalos, e passava as noites a namorar ou a estudar o seu estranho dom. Agora dominava-o perfeitamente. Percebeu que precisava de normalmente falar com as pessoas, ou pelo menos escutar a sua voz, para poder ter alguma certeza daquilo que o dom lhe mostrava.
     A maioria das pessoas da cidade tinham uma aura como o vento, demonstrando simplicidade, e na maior parte das vezes pobreza de espírito. No mercado encontrava muitas almas ardentes como o fogo, ou sólidas como a terra, e aprendeu até a distinguir o fogo que provinha da raiva e o fogo que provinha da maldade. Lá era onde normalmente encontrava mais facilmente discussões ardentes. Um dia chegou até a ver uma senhora recurvada e tapada, com a alma mais negra que já tinha visto. Mas erradamente assumiu que a pessoa era perversa, quando na realidade era uma viúva na mais infeliz das misérias ao saber da notícia de que o marido tinha morrido, muito pouco depois de a sua filha ter perecido devido a enfermidades. Juntamente com Eryanne, Jay conversou muito com esta mulher, escutando a sua mágoa e tornando a sua alma de dia para dia mais clara. Alegrava-o que estava já a ajudar as pessoas de uma forma totalmente diferente daquela que tinha imaginado quando era ainda uma criança. Mas o treino de cavaleiro era para ele também fonte de alegria.
     - Estão prontos! Ambos! - Comunicou Daqao uma tarde, depois de um treino especialmente duro. - O meu treino está terminado, o resto virá com a experiência. Têm também a idade certa para ir fazer o teste ao imperador, e cada um tem na mesa de seu quarto a recompensa por todo o trabalho nesta casa. Por outro lado, Eryanne, o teu trabalho nunca estará terminado, como sabes, por isso esta casa estará sempre aberta para ti. Vejo-te como uma filha, visto que te conheço há tanto tempo, e todos vocês terão sempre aqui abrigo e protecção  enquanto eu for vivo. Mas devem agora dar um novo rumo, como adultos, á vossa vida.

VIII -
     Jay encontrou na sua mesa uma sela, e um saco com cirrin. Ludo encontrou exactamente a mesma coisa. Eryanne tinha antes uma pilha de tomos e manuscritos.
     - Vais ficar aqui mais algum tempo Eryanne? - Perguntou-lhe ele, depois de ter arrumado tudo o que era seu, no dia seguinte.
     - Tonto, não. Vou contigo claro. Mas primeiro, porque não fazes uma visita aos teus pais? Desta vez podes ir de cavalo.
     - E levo-te no cavalo?
     - Se não te importares claro.
     Partiram então mesmo antes de tomarem a refeição do meio dia. A velocidade do cavalo era surpreendente com duas pessoas em cima. Daqao tinha-lhe oferecido exactamente o cavalo que tinha gostado mais, Charcoal, que era preto como carvão. Pararam diversas vezes para permitir ao cavalo descansar, e de modo a eles próprios descansarem. Charcoal percorreu a maior parte do caminho durante a manhã. Com força ainda para cavalgar, o par sentiu fome, por isso desceram e tomaram uma refeição leve e fria, preparada por Eryanne ainda em casa de Daqao. A meio da tarde chegaram finalmente a Yuoa, uma pequena aldeia que ladeava, por um lado, uma floresta de ****, e, por outro, por um deserto verde e rochoso, cheio de vida, que teriam de percorrer. Entao, 
por preferirem não acampar, tomaram a decisão de pernoitar em Yuoa e partir muito antes do nascer do sol, no dia seguinte.
    Yuoa era silenciosa. Os seus habitantes, lenhadores

* * Começo: 18-Julho-2009 * *
* * Fim: por terminar * *

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